A terceira mulher (de areia)

Em sua quarta exibição, contando com o remake dos anos 90, no Canal Viva, “Mulheres de Areia” conquista o público com um folhetim clássico, cuja trama fora inspirada em “Uma vida roubada”, filme que contava com Bette Davis como protagonista no papel que seria levado a interpretação por Eva Wilma nos anos 70 e por Glória Pires, posteriormente.
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Ruth sobre Raquel, para Marcos: “No fundo, eu queria ser igual a ela. Ela era uma pessoa fascinante”.
O duplo é um dos clichês mais (re)conhecidos do folhetim.
Penso que os clichês, em sua estrutura arquetípica, revelem também narrativas ancestrais, as histórias universais, que continuarão se “repetindo” em outros gêneros e formatos: da tragédia e da epopeia ao melodrama, um gênero ainda bastante jovem quando comparado aos outros dois, tão depredado, muitas vezes por opiniões ingênuas.
Ivani Ribeiro escreveu três versões (uma delas no rádio) para essa chamativa história.
Autora tantas vezes esquecida, devendo ser colocada no mesmo patamar de revolucionária quanto Janete Clair em termos de linguagem melodramática na televisão brasileira, em questão de referências literárias, cinematográficas e teatrais presentes em suas obras; do quanto influenciou outras gerações de autores. Precisamos lembrar mais dessa inteligentíssima novelista.
No fim, a sombra nos atrai. A sombra é sedutora, é fascinante, por mais que nos encaminhe ao precipício. O curto-circuito se dá quando a sombra nos conduz a outros caminhos, à modificação, à re-elaboração: Ruth precisou de Raquel para crescer em sua demanda narrativa, IGUALMENTE como Paulina com Paola (“A Usurpadora”, em que Inés Rodeña bebeu da mesma fonte que Ivani para criar outra trama radiofônica, tal qual a novelista brasileira).
No fim, Ruth e Raquel são uma só. Não é boa e nem má. O inferno somos nós, não os outros. E mesmo o melodrama é capaz de revelar isso: o duplo não está apenas nas irmãs-gêmeas, na troca de identidades; o duplo está na própria estrutura triangular de qualquer trama. Mesmo a mocinha deseja ser a vilã – o oposto, aliás, se mostra de formas mais sutis, pois a mocinha representa sempre uma ameaça à ordem criada e planejada pela vilã. Vejamos “A Favorita” ou “Avenida Brasil”: nunca estivemos tão próximos do desejo de ser o outro. Ou ainda, “A Regra do Jogo”: um complexo triângulo amoroso em que Romero (Alexandre Nero) tinha a seu lado uma mocinha ou vilã aparentemente clássicas; no entanto, cada uma definia a complexa faceta do protagonista, em busca de descobrir quem era na realidade.
O terceiro vértice do triângulo é nosso desejo, tantas vezes recalcado, em busca de nossa elaboração. E também é projetado no outro, na figura de um personagem (Marcos, em “Mulheres de Areia”); na figura de um desejo oculto: transformar-se naquilo que, no fim, sabemos poder ser. E que gera não apenas reviravoltas, como também a revelação de que toda mocinha não é tão boba quanto parece: a gêmea também não é apenas vilã, pode assumir o próprio papel de mentora, portadora de “conhecimentos” necessários para a performance narrativa da protagonista. Sem Raquel, Ruth não se transforma; sem Paola, Paulina tampouco.

Foi dada a largada: Babilônia

“A ambição vem do coração”: três diferentes ambições, três diferentes desejos, três pontos de vista. Folhetim clássico e inovações em Babilônia

Queridos novelamaníacos: volto depois de um período sem postagens, marcado por muito trabalho. Não me esqueci da parte final da análise de Tieta, ainda não finalizada, devido à pesquisa sobre as personagens femininas e análise de algumas cenas específicas. Também não está esquecido, ainda nesta semana, uma postagem dedicada ao fim de Império, cujo capítulo inicial abriu as análises deste blog.
Babilônia começou parecida com Império em alguns aspectos: uma edição clipada, com diálogos inteligentes, ágeis e rápidos entre os personagens principais, além de uma primeira fase que demonstra um minucioso trabalho de escaleta por parte dos autores principais. Tal agilidade se mostra cada vez mais presente para segurar o espectador, que atualmente deseja um bom folhetim (como se apresentou Babilônia até o momento), mas que seja eletrizante.
As ações do primeiro capítulo foram centralizadas em Beatriz (Glória Pires) e Inês (Adriana Esteves). A primeira tem ares de superioridade, lembrando muito a inteligente e não menos sociopata Maria de Fátima, de Vale Tudo. Toda a ambição que a personagem anunciava foi o que moveu, logicamente, sua própria derrocada, ficando rapidamente nas mãos da “amiga” de juventude Inês, que antes mesmo de querer retomar laços de amizade demonstrou seu recalque, sua projeção numa mulher que ela considera bem-sucedida, mas que ao chegar no Brasil não tinha mais escritório de arquitetura nem mesmo marido português rico: depende de um humilhante golpe do baú, clássico de tantas telenovelas, para se reerguer. Note-se aqui uma personagem firme, objetiva, de roupas sóbrias e estilosas, cabelos curtos (não poderíamos lembrar dos de Odete Roitman, vilã de traços tão pouco femininos?); uma verdadeira dama fatal: inclusive vestida de vermelho para matar o amante (e depois de preto, após o crime cometido). É essa mulher que Inês, tão amarga, tão invejosa, quer se tornar?
O duelo de titãs está apenas começando: baseado em duas personagens femininas tão controladoras, manipuladoras, capazes de tudo: para terem o que quiserem ou para serem quem quiserem – aí entra Regina (Camila Pitanga), também opondo-se socialmente à pomposidade decadente de Beatriz ou ao desprezo que Inês tem pela própria classe, desejando ter um “apartamento que não tenha vista para favela”. É uma moça pobre, honesta, batalhadora e negra: questões de gênero e etnia finalmente no horário nobre e para a representação dos negros na teledramaturgia (que já não eram vistos, pensando bem, desde Viver a Vida, de Manoel Carlos, com a Helena de Taís Araújo). Cabelos longos e soltos (ao contrário inclusive dos cabelos presos – uma alusão à frustração e autorrepressão – de Inês e aos de Beatriz), passos leves, fala “mansa” (e não as constantes mudanças de tom das outras protagonistas, dissimulando) e uma alegria irradiante no olhar confiante. Uma mocinha clássica: desiludida por um falso “príncipe”, casado e com filhos (Gabriel Braga Nunes); que se vê órfã e tendo que sustentar uma filha que criará sozinha; além de abandonar o sonho da faculdade de medicina pelo sustento numa barraca de praia. Seria mera coincidência a comparação com Raquel (Regina Duarte) em Vale Tudo, abandonada pela própria filha ao fim do primeiro capítulo, sem casa nem dinheiro – mas que não vê “tempo ruim” de forma alguma. Aparentemente, stamos caindo no clichê de mocinha e vilãs; no entanto, tratam-se de três personagens bastante complexas para cairmos em tais definições, como os próprios autores falaram a respeito de Inês e Beatriz, por exemplo.
E o que dizer do casal formado por Fernanda Montenegro e Nathália Timberg e de um polêmico (?) selinho já no primeiro bloco? De atuações seguras, baseadas no olhar que demonstra a cumplicidade de anos de relacionamento, no toque delicado das mãos aos ombros, em diálogos triviais? Deixo aos leitores suas impressões sobre aparições rápidas dessas duas grandes atrizes e do que ainda virá nos próximos capítulos (provavelmente já nesta primeira semana), quando entra em cena o filho de criação das duas, Rafael (Chay Suede). Os interessantes arranjos e as relações familiares de Babilônia merecem outra postagem.
Aliás, para encerrar, porque não falar da relação com a maternidade envolvendo o trio protagonista: Beatriz afirmou que não pode ter filhos (e é interessante sua fixação pela figura masculina, seu fascínio pelo sexo casual); Inês mal se preocupa com a filha e projetará nela todas as suas frustrações e planos que tinha para si mesma; a mocinha, por sua vez, não aceitou o aborto proposto por Luís Fernando e fará o impossível para defender como puder a filha (engraçado perceber que tanto Inês quanto Regina são mães de meninas, mas de criações completamente diferentes).
Novelamaníacos, agradeço a atenção e aguardo as opiniões, o debate e as análises sobre Babilônia.

A Odete Roitman nossa de cada dia

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Odete foi assassinada no natal de 1988. Mas permanece viva, inclusive após o resultado do segundo turno das eleições de 2014.

Enquanto estou afastado das postagens habituais, por motivos de MUITO trabalho (apesar de estar finalizando a segunda parte da análise de “Tieta”), tive de parar para assistir a um vídeo curioso, em que há a revolta de uma senhora a respeito do voto dos nordestinos para a candidata à eleição Dilma Roussef; ela cita que deverá ir para Orlando e que tem condições suficientes para isso, visto que, enquanto houver pessoas vivendo de “bolsas”, serão pobres para sempre e não poderão mudar suas vidas. Sem qualquer intenção de fazer comentários pessoais sobre o vídeo, até porque não é este o ensejo deste blog, penso que é possível tecer algumas comparações com a telenovela “Vale Tudo”, que merece dezenas de postagens para seus bem-estruturados personagens, para as atuações, para a narrativa bem amarrada, para a estrutura de folhetim com viés bastante político, preparado por tramas que a antecederam, como “Roda de Fogo”.

Quando Gilberto Braga criou, ao lado de Leonor Bassères e Aguinaldo Silva, a magistral Odete Roitman (Beatriz Segall), fazia uma crítica à burguesia ascendente, à arrogante parcela da elite brasileira que se julgava superior por sua educação fora do país (de preferência na Europa, em solo francês), por ver o país como uma “terra de ninguém”, mas que poderia ser dilapidado, explorado e manipulado política e economicamente através de manobras empresarias, como as da TCA de Odete e Marco Aurélio (Reginaldo Faria). Odete surgia no contexto de um país recém-saído de uma terrível ditadura, dentro do questionamento dos autores, em especial de Gilberto, sobre se valia ou não a pena ser honesto num Brasil onde se descobriam mais e mais escândalos de corrupção de políticos e de grandes empresários – e cujas decisões, como tantas vezes demonstrou o inescrupuloso e frívolo Marco Aurélio, interfeririam na vida de milhões de (pobres) brasileiros.

É interessante que Odete simpatizava com Maria de Fátima (Glória Pires) tendo em vista que se projetava nela, o que chegou inclusive a confidenciar para a irmã, Celina (Nathália Timberg) – Odete, no fundo, era uma carreirista, uma alpinista social, uma sociopata tão parecida (para não dizer igual) com Fátima, capaz de jogar a culpa de um crime cometido na filha dependente, carente e fragilizada, Helena (Renata Sorrah), além de manipular como um bibelô o filho que ela julgava “idiota” e sem ideias, Afonso (Cássio Gabus Mendes).

Não entro no mérito de “dissecar” a personalidade de Odete, mas de ver, como nos mostrou o vídeo, que “viralizou” neste domingo abaixo, o quanto ela permanece atual, o quanto esta personagem, enquanto válvula de escape da alta burguesia brasileira, que afirma odiar o país mas precisa dele para explorá-lo (ou já o fez) para que pudesse enriquecer, continua atual. O “banzo” a que Odete se referiu a Fátima, sobre as saudades de brasileiros que estão no exterior, trabalhando/residindo, que ela dizia ser “coisa de negro e de índio” fica nítido.

Odete ainda está na memória de milhões de brasileiros por representar, infelizmente, a válvula de escape (de tantos preconceitos, de ignorâncias, da arrogância perante as demais classes socioeconômicas, da visão de um “paraíso” que possa ser chamado de Paris ou Orlando) supramencionada, do abismo social existente no país, da possibilidade de perda de privilégios das altas classes diante dos governos que possam ou não estar no poder (nas esferas municipais, estaduais ou federais).

As mulheres de “Tieta” – Parte 1

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Queridos leitores, novelamaníacos como eu, peço desculpas a todos pelo período sem postagens, devido a compromissos meus de trabalho e as correrias cotidianas… Como vinha prometendo nos últimos dias, estamos diante de uma joia, uma pérola do folhetim eletrônicoTieta, novela escrita pelo “mago” Aguinaldo Silva, com Ricardo Linhares e Ana Maria Moretzsohn, livremente inspirada em Tieta do Agreste, do saudosíssimo Jorge Amado, exibida pela Rede Globo entre agosto de 1989 e março de 1990, substituindo outra grande telenovela: O Salvador da Pátria, de Lauro César Muniz.

Histórias de vingança são um verdadeiro prato cheio para o folhetim: temos alguns exemplos recentes, como a trama de Herval (Ricardo Tozzi), em Geração Brasil, atualmente no ar; a de Aline (Vanessa Giácomo), movida por sua tia Mariah (Lúcia Veríssimo), em Amor à Vida; à de Nina/Rita (Débora Falabella) e Carminha (Adriana Esteves), transformada num ícone que revolucionou o gênero teledramatúrgico, em Avenida Brasil; ou mesmo a divertida paródia destas duas últimas personagens efetuada com maestria por Maria Adelaide Amaral e Vincent Villari pela dupla Tina (Ingrid Guimarães) e Bárbara Ellen (Giulia Gam), em Sangue Bom.

As histórias de vingança são todas semelhantes entre si e guardam algo de muito humano, o que por si só já nos permite a identificação com elas: a ideia de fazer justiça com as próprias mãos em algum momento de nossas vidas; o rancor, o ódio e a mágoa que alimenta o desejo de vingança; e normalmente um desenrolar narrativo bastante cadenciado, num crescendo, cujas consequências podem ser desastrosas para os personagens que a ela estão relacionados, direta ou indiretamente. Tais histórias, em nossas telenovelas, costumam “beber” da estrutura, da espinha dorsal de duas obras famosas da literatura universal: O Conde de Monte-Cristo, de Alexandre Dumas; e a peça teatral A visita da velha senhora, de Friedrich Durrenmatt. O olhar feminino sobre a vingança nesta grande novela, contudo, tinha um viés metafórico: Aguinaldo Silva afirmou que desejava, através de Tieta, mostrar o retorno da liberdade de expressão após duas décadas de regime militar.

A intenção destas postagens é, como fizeram outros jornalistas e estudiosos renomados, tais quais Nilson Xavier, prestar uma singela homenagem a esse clássico das telenovelas – uma das três maiores audiências do horário nobre da TV Globo nos anos 80 – tendo em vista a comemoração de 25 anos de sua exibição. E nada melhor que falar de suas personagens femininas, tão interessantes e muito bem exploradas na adaptação de Aguinaldo, Ricardo e Ana: a busca pela liberdade em um ambiente machista e hostil à qualquer tipo de transformação social, política e econômica. Que tal iniciarmos, assim, pela dupla fantástica de protagonistas e lembrada pelos espectadores até hoje: Tieta (Betty Faria) e Perpétua (Joana Fomm).

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Sofrimento, proibições, misoginia: percalços diversos e simbólicos para as mulheres de Tieta

Assim como fez em Império, Aguinaldo Silva iniciou a novela não diretamente com a já conhecida primeira fase de suas novelas; porém, com a chegada de Ascânio (Reginaldo Faria) a Santana do Agreste depois de mais de vinte anos, são seus amigos – conhecidos na juventude como os “Cavaleiros do Apocalipse” – que contam o que houve a Tieta.

É interessante a primeira cena em que ela, interpretada na juventude por Cláudia Ohana, está pastoreando suas cabras. Tieta se encontra num plano elevado em relação aos “cavaleiros”, no alto de uma duna – posição que ocupará, aliás, quando de seu retorno, acima de tudo e de todos, para conseguir concretizar sua vingança, deixando-se render por inúmeras bajulações daqueles que outrora nada fizeram para impedir sua expulsão.

Geralmente, as famílias dos protagonistas de tais histórias de vingança são atacadas; têm membros assassinados – o que já constitui forte motivo para os personagens principais quererem fazer justiça a qualquer preço – inclusive em A visita da velha senhora, é o abandono por parte do jovem namorado (e não da família), estando grávida, e tendo de se submeter à prostituição – além de perder seu filho -, que leva Claire Zahanassian voltar à terra natal, medíocre e apagada como Santana do Agreste, trazendo a modernidade com uma condição: a punição (ou melhor, a morte) de seu antigo namorado.

Em Tieta, ao contrário, é no seio de sua família que ela encontra a rejeição (pelo pai e pela irmã), transformada em bode expiatório de uma cidade hipócrita e mesquinha. Sua irmã, Perpétua (vivida por Adriana Canabrava, nos flashbacks iniciais) procura justificar o ódio e inveja de Tieta por meio da religião: por um lado, azucrina o Padre Mariano (Cláudio Corrêa e Castro), falando mal de Tieta, afirmando que esta “mexe” com todos os homens; e que seu único pecado foi o de ter nascido como sua irmã – e que terá de purgá-lo. Por outro lado, já afirma à madrasta, Tonha (Ingra Liberato/Yoná Magalhães), que Tietá será “nossa desgraça”. Tal qual Cora (Marjorie Estiano/Drica Moraes) em Império, Perpétua parece não piscar de modo algum; sequer respirar. O tempo todo está à procura de Tieta, à espreita de seus passos, pronta para “dar o bote” e ver-se livre da irmã que representa seus desejos recalcados.

Aliás, nota-se tal configuração no figurino: apesar da simplicidade das roupas, Tieta usa vestidos mais justos, de cores claras; Perpétua usa tons pastéis (marrom, especialmente; e o luto com que se veste por toda a trama, na “segunda” fase). Nem mesmo Tonha, tão sufocada pelo marido (Sebastião Vasconcelos), se veste de modo parecido ao de Perpétua. O mais interessante é que, nesse entrecho trágico, é a madrasta a única aliada de Tieta – que sempre lembra ao esposo e à enteada carola as mentiras que inventaram à Tieta para que esta, depois de expulsa, casada e rica, vivendo em São Paulo, desse-lhes grandes somas em dinheiro mensalmente.

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Tieta enfrenta Perpétua depois de ser pega pela irmã “no flagra”, jogando em sua cara que ela é invejosa

O cajado do pai de Tieta, Zé Esteves, é outro importante elemento: nesse microcosmo familiar, que reflete a dureza das regras dessa sociedade misógina e autoritária, representa a força do machismo, a desvalorização da mulher e as liberdades individuais completamente tolhidas.

A questão do desejo, da sexualidade e da sua ligação com a liberdade é extremamente explorada por meio da protagonista: é ela quem desafia a lógica “atrasada” e recalcada de Santana do Agreste, sendo conhecida, aliás, tal qual uma cabrita (como as que pastoreia), que tem furtivos encontros sexuais com um homem mais velho (Herson Capri). Uma das mais bonitas cenas é a que Tieta, depois dos encontros com esse misterioso homem, banha-se no rio: se a “noite” pode ser associada ao segredo (a pulsão sexual; a procura pela liberdade), surge Tieta nas águas em meio ao dia nascendo, com seus cabelos sempre soltos, ao “sabor” dos ventos (ao contrário dos cabelos em coque de Perpétua; ou mesmo do lenço que cobre os de Tonha): a sensualidade, simbolizando a liberdade alcançada e o desejo realizado, está às claras – parece segredo, quando na verdade não o é.

Após as provocações de Arturzinho, o filho do Coronel (Ary Fontoura), Osnar (Marcos Winter/José Mayer) fala com Tieta, em outra belíssima cena num riachinho. Incisiva, Tieta afirma que Artur tem raiva dela: “Mas não é só ele não, é o povo todo do Agreste”, com exceção dos homens, inclusive seu próprio pai, que a “espia de longe” – numa sugestão de desejo incestuoso. Tieta é hostilizada porque não recalca os próprios desejos, como todas as outras mulheres e, em especial, sua própria irmã, completamente neurótica e mal-resolvida.

Tieta, assim como todas as mulheres de Santana do Agreste, é tratada de maneira inferior (basta lembrar das “rolinhas” compradas pelo Coronel); seu “crime” foi ter-se entregue a seus desejos e ter decidido ser dona de si e de suas vontades (como infere a letra da belíssima música de Simone, tema de Tonha) – algo inaceitável para uma moça que deveria preservar sua virgindade e obedecer a seu marido, extensão da figura paterna (basta olhar para sua irmã mais nova, Elisa (Tássia Camargo), casada com Timóteo (Paulo Betti), e a frustrante relação de ambos). E por tal “crime”, ela apanha do pai com seu cajado, sendo defendida apenas pela madrasta e por Dona Milu (Míriam Pires), mãe de sua melhor amiga, Carmosina (Thaís de Campos/Arlete Salles), que, ao contrário da brutalidade de Zé Esteves, tenta resolver a situação dialogando, sem qualquer sucesso (e que ainda dá dinheiro à Tieta, para ajudá-la).

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À vista de todos, Tieta é humilhada pelo pai e escorraçada de Santana do Agreste

Tieta vai embora de “cabeça erguida”, com o lenço que havia ganho de presente – num gesto já visto em outras tantas histórias: a promessa do retorno para concretizar a vingança. Neste caso, sua vingança, tal qual a de Claire Zahanassian, é direcionada a todas as pessoas que a viram humilhada em Santana do Agreste e nada fizeram para ajudá-la; mas especialmente àqueles que deveriam, em tese, apoiá-la.

É necessário falar do progresso que Ascânio (Reginaldo Faria) quer trazer para Santana do Agreste, tal qual Mundinho Falcão em Gabriela (José Wilker, na versão de 1975; Mateus Solano, na versão de 2012), com a clara oposição de Perpétua e do Padre – assim como do Comandante Dario (Flávio Galvão) e suas aspirações ecológicas. Afinal, tal progresso só se concretizará com a volta de Tieta, para quem dinheiro não representa qualquer problema: ela traz consigo não apenas a reafirmação da liberdade que a conduziu à sua expulsão, mas a possibilidade de modernizar e mudar a vida dos medíocres habitantes da cidadezinha – não seria essa, como ela mesma comentou com Carmosina, em seu retorno, a sua maior vingança contra Perpétua e o próprio pai, contra a própria cidade chamada pelos moradores de “fiofó do mundo”?

Com esta reflexão, encerramos nesta postagem a comparação inicial entre Tieta e Perpétua, que continuará na próxima; assim como falar mais das relações de poder e de gênero que se estabelecem entre outras marcantes personagens de Tieta.

Em nome do filho: os interessantes núcleos familiares de “Amor à Vida” – parte 2

Olá, queridos novelamaníacos! Na segunda parte do texto sobre “Amor à Vida”, destacamos as relações familiares de algumas de suas tramas paralelas. 

A dupla formada por Valdirene (Tatá Werneck) e sua mãe, Márcia (Elizabeth Savalla) chamou bastante a atenção dos espectadores. Desde o começo da trama, a ex-chacrete fez o possível para que a filha casasse com um rapaz milionário e tivesse uma vida muito melhor que a sua. Márcia fazia isso pelo “bem” de Valdirene ou também pelo próprio? Em seu percurso ao longo da trama, ela fez o que pôde para separar a filha do “despacho” Carlito (Anderson di Rizzi), por quem era realmente apaixonada – mesmo com as idas e vindas do casal.

Apesar de fazerem parte de um núcleo cômico, não seria possível dizer o quanto as personagens representavam certo desespero não apenas pela ascensão social, mas uma certa projeção que Márcia fazia de si mesma em relação à filha – tendo em vista o seu passado, revelado pouco a pouco pelo autor: sua derrocada depois de ter sido chacrete; sua demissão quando babá de Félix e de seu irmão menor, que acabou morrendo afogado na piscina dos Khoury; e as dificuldades por que passou (a exemplo de uma sugestão sobre ter-se prostituído, de certo modo nas entrelinhas para os espectadores) depois disso para conseguir criar a filha.

Nesse ínterim, Márcia e Valdirene não seriam, ao invés de meramente cômicas, tragicômicas? – seguindo o que preconizava Pirandello em “O Humorismo”, no qual aborda a necessidade de uma nova perspectiva para a tragédia moderna, que possuísse um viés cômico inicial e que, com a aproximação dos personagens em relação aos leitores/espectadores, ver-se-ia seu lado trágico e se daria a catarse.  

Márcia e Valdirene: rir para não chorar?

Márcia e Valdirene: rir para não chorar

Mesmo com o tom cômico das duas personagens, seria possível comparar a vendedora de cachorros-quentes com Tamara (Rosamaria Murtinho), que foi aos poucos se revelando como uma espécie de “cafetina da própria filha”, visto que não perdia uma oportunidade de usar Edith – que também soubemos ter sido uma prostituta – para que pudesse se dar bem e ter uma vida de luxo, haja vista o seu passado com César e o casamento de fachada com Félix, bem como conhecer os piores segredos do vilão para chantageá-lo. Além disso, Tamara parecia uma espécie de mentora da filha, manipulando suas atitudes em relação aos “podres” de que tinham conhecimento dos Khoury para que nunca saíssem perdendo – a exemplo de quando Edith mente sobre a filiação de Jonathan para César e usa tal informação para arrancar-lhe dinheiro, conduzida por sua esperta mãe.

Mais uma vez, Carrasco relativiza suas personagens: Márcia, ao contrário de Tamara, é retratada como uma mulher batalhadora, que fez o impossível para sustentar a si e a filha (que vive dizendo que só come cachorro-quente) – de modo que sua conduta parece compreensível, em busca de um marido rico para Valdirene.

Edith, por sua vez, poderia parecer apenas uma carreirista; no entanto, ela fazia qualquer coisa para ficar com Félix, a quem ama profundamente, mesmo sabendo que a relação dos dois é uma grande farsa – tal qual Pilar com César. Valdirene também poderia parecer uma aproveitadora; contudo, em vários capítulos, ela se questionou sobre estar “correndo” atrás de um homem rico, bem como discordar desse propósito de sua mãe devido à paixão por Carlito (Anderson di Rizzi). Como podemos observar, Valdirene, Edith e Félix têm, cada um a seu modo, essa mesma característica: parecem guiados por objetivos que não são os seus, fazendo o que podem para agradar os pais, mesmo carregando um (profundo) conflito interior.

Valdirene, Edith, Tamara e Márcia juntas - mera coincidência ou profunda ironia em torno das quatro personagens? Valdirene, Edith, Tamara e Márcia juntas – mera coincidência ou profunda ironia?

O que dizer então de Amarilys (Danielle Winits) e de sua relação com Eron (Marcello Antony) e Niko (Thiago Fragoso)? Com um inovador triângulo amoroso para as novelas brasileiras, apresentando um casal homossexual bem-sucedido e de alto nível socioeconômico (que não havia dado certo, infelizmente, em Torre de Babel, de Sílvio de Abreu), Carrasco mostra que os dois personagens enfrentam os mesmos problemas – a traição, por exemplo – que casais heterossexuais, se o compararmos a César e Pilar, ou mesmo a Patrícia (Maria Casadevall), Guto (Márcio Garcia), Sílvia (Carol Castro) e Michel (Caio Castro).

Além disso, o escritor, a princípio, não vilanizou Eron nem Amarilys, mostrando uma situação delicada: o amor desesperador desta pelo advogado e pelo próprio filho – que se intensificou e a fez se transformar numa vilã neurótica; Eron tentando contornar a situação, sem saber de que lado ficar; e Niko querendo tocar com o marido sua vida conjugal, ao lado do filho recém-nascido, estranhando a presença controladora de Amarilys. O filho que Niko tanto queria transformou-se, de certo modo, no motivo para afastá-lo do marido e do próprio desejo de ser pai – o que, até o final da trama, se concretizou, quando descobre ser o pai biológico da criança de Amarilys.

niko amarilys eronNiko, Amarilys e Eron: abordagem inovadora para um casal homossexual em novelas brasileiras; o que representava o auxílio aos dois para terem um filho biológico transformou-se em motivo de separação

Através de relações familiares frágeis, como as mencionadas no texto, marcadas por filhos fazendo o que seus pais desejam, usados por eles para que possam atingir seus objetivos ou afirmar suas (falsas) crenças e preconceitos, Carrasco nos mostra a dubiedade de seus personagens – tão falíveis quanto nós, seus espectadores. Talvez, compreendendo melhor suas razões, falhas e fragilidades, aproximando-os de nós, seja mais fácil aceitar o pacto narrativo e fundir-se à trama, torcendo por tão complexos personagens.

E sobre que novela será nosso próximo texto? Aguardem nesta semana!!!  

Em nome do filho: os interessantes núcleos familiares de “Amor à Vida” – parte 1

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César (Antônio Fagundes), Pilar (Susana Vieira), a nora Edith (Bárbara Paz) e os filhos: cenas de uma família feliz? 

Queridos novelamaníacos, depois de Avenida Brasil, vale a pena falar de novo de uma novela exibida até o começo deste ano: Amor à Vida, repleta de inovações estruturais quanto ao perfil dos personagens e sua transformação ao longo da telenovela; ou então das influências – inclusive psicológicas – que a família de certos personagens efetuava sobre eles.

Poucos meses antes da estreia da novela, jornais e revistas noticiaram que o título inicial da trama seria Em nome do filho, devido ao conflito envolvendo os protagonistas, Bruno (Malvino Salvador) e Paloma (Paolla Oliveira) pela guarda de Paulinha (Klara Castanho). Alguns meses depois da exibição da telenovela, podemos perceber o quanto o título provisório ressoava não apenas no que tange à trama principal, mas a outras perpassadas por complexas relações familiares. Na postagem de hoje, faremos menção às relações entre os personagens principais da telenovela. 

Comecemos pelos irmãos Félix e Paloma. Esta sempre tomou suas decisões, mesmo a contragosto dos pais, César (Antônio Fagundes) e Pilar (Susana Vieira) – a exemplo de quando, no primeiro capítulo, ela largou tudo para viver uma aventura com Ninho (Juliano Cazarré) e seus amigos; ou de seu casamento com Bruno, com quem César não queria que ela ficasse. Paloma, ao contrário de Félix, procura resolver seus problemas e conflitos por si mesma – ainda que sem qualquer apoio dos pais.

Félix, por outro lado, não agia como realmente gostaria, a começar por sua homossexualidade inicialmente reprimida. Seu ódio por César, como Glauce (Leona Cavalli) já lhe havia dito, revela o desespero por ser aceito (e amado) pelo pai da maneira que é. E, de certa forma, se assim podemos dizer, o desejo de ser independente como é Paloma.

Temos, até aqui, uma proposta interessante de Walcyr Carrasco: o grande vilão, capaz de qualquer coisa para realizar seus planos, era na verdade um homem frágil, instável, dependente e extremamente inseguro; a mocinha, tida como ingênua, incapaz de ver maldade nas estranhas atitudes de seu irmão, era bem-resolvida – podemos ver isso no modo como lidou com a separação de seu pais. O que não significa que ela esteja sempre certa, tendo em vista quando pensou que Bruno pudesse ter raptado sua filha, impedindo-o de ver a menina. 

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A explosão de Paloma ao descobrir que o irmão, que ela amava e defendia, foi o responsável pelo rapto de sua filha, Paulinha

Que pais estavam por trás desses filhos tão diferentes? César, desde o princípio, pareceu um pai e marido exemplar, além de um profissional respeitadíssimo, pautando suas atitudes pela ética. No entanto, Carrasco foi desconstruindo tal perfil, mostrando-nos um homem machista e preconceituoso, “tão” vilão quanto Félix era. César quis moldar os filhos à sua vontade – quantos pais não agem assim? Sua relação com Paloma é mais positiva, pelo fato dela ter seguido os mesmos rumos profissionais que César e a esposa: a medicina. Porém, Félix foi quem mais tentou fazer as suas vontades, formando uma família “normal” e assumindo a administração do hospital.

Pilar (atenção ao nome que Carrasco deu à personagem e às suas características, posteriormente citadas), por sua vez, apesar de sua formação como dermatologista, passou a vida toda em função de um casamento desgastado e das migalhas do amor de um marido que já não a ama mais, suportando todas as suas traições. Alguns espectadores afirmavam que não havia trama para a personagem – e como uma mulher assim, tão apagada diante de sua própria vida, capaz de renegar a si mesma para manter seu casamento, poderia ter alguma história para contar, a não ser quando resolveu assumir seu relacionamento com o motorista da família, Maciel (Kiko Pissolato), depois de longo período chorando as mágoas da separação e tentando reconstituir, sem sucesso, um casamento em frangalhos?

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César e Pilar: Carrasco mostrando a hipocrisia por trás de tantos relacionamentos aparentemente “sólidos”

Assim, se os Khoury pareciam formar uma família perfeita, Carrasco mostrou que ela não existia – muito menos a família “de mentirinha” de Félix, na verdade uma extensão criada por seu próprio pai, visto que Edith (Bárbara Paz) era sua amante, assim como Jonathan (Thalles Cabral), seu filho legítimo (apesar de Edith revelar, nos últimos capítulos, tratar-se de uma mentira). Apesar de observarmos, desse modo, a que ponto César poderia chegar para impedir que Félix assumisse sua homossexualidade, o médico não se vê na condição de um homem egoísta; pelo contrário, ele mesmo justificou suas “puladas de cerca” para o filho como sendo aceitas pela sociedade (o que não se aplica à orientação sexual de Félix e sua traição para com Edith) e, portanto, para si mesmo. 

Ao ser chantageado pela nora, César afirma querer ter Jonathan perto de si, dizendo que ele será a “salvação” da família – aceitando as exigências de Edith para ela reatar com Félix e os dois continuarem mantendo as aparências. A ideia de projeção nos filhos se amplifica quando Aline (Vanessa Giácomo) anuncia sua gravidez para o médico, que pensa no filho como uma forma de recomeçar uma família que não havia dado certo com Pilar – vendo Paloma como uma desequilibrada e Félix como um administrador corrupto e, acima de tudo, gay, o que para César é ainda pior.

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Aline: a concretização das neuroses de César em torno de uma família “perfeita”, com um novo filho e uma esposa que parecia acatar suas vontades

No próximo post, falaremos das instigantes relações familiares nas tramas paralelas, a exemplo de Márcia (Elizabeth Savalla) e Valdirene (Tatá Werneck), cujas personagens fizeram enorme sucesso e tiveram grande repercussão – a própria Valdirene teve seu perfil modificado pelo autor (ela se tornaria evangélica e mudaria completamente seus hábitos) devido a tal sucesso. 

O que vocês têm a dizer? Vamos comentar!!! 

Avenida Brasil: os limites entre os papéis de “vilã” e “mocinha” – 2ª parte

avenida brasil

Nina realmente queria apenas justiça? 

Por Leandro Ricetto

Congelem a Carminha, a Nina, a Família Tufão: hoje termino o texto a respeito dos limites estruturais entre mocinha/vilã na novela que revolucionou o gênero: Avenida Brasil

Na metade da trama, mais especificamente no tão aguardado capítulo 100, quando Carminha descobre que Nina e Rita são a mesma pessoa, decide – como a madrasta malvada quando toma conhecimento de que Branca de Neve ainda está viva – acabar com ela, mas simbolicamente, enterrando-a viva, e ameaçando-a para que não retorne à mansão. Assim como os anões pediam a Branca de Neve que fosse cautelosa, Mãe Lucinda fazia o mesmo com Nina a respeito de Carminha, afirmando o tempo todo que sua vingança apenas a prejudicaria. Nina, em detrimento de tais conselhos, dá continuidade à sua performance narrativa, até sofrer uma sanção negativa por parte de Carminha, quando esta descobre sua “farsa” – é enterrada viva e ameaçada por Carminha caso pense voltar à mansão da família Tufão (numa das cenas mais emblemáticas e lembradas de toda a novela).

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Momento da sanção negativa ao programa narrativo de Nina: Carminha aterroriza a ex-enteada e a obriga a não voltar à mansão   

A partir daí, a vingança propriamente dita tem início. Nesse ponto, o autor efetua uma reversão em relação à trama de Branca de Neve e de Cinderela.

Nos dois contos de fada, suas protagonistas não querem se voltar contra suas “algozes”. Como afirma Bettelheim (2002, p. 76): “A desolação não induz a criança a ter desejos vingativos (…). Branca de Neve não abriga desejos raivosos contra a rainha malvada. Cinderela, que tem bons motivos para castigar as irmãs, deseja, ao contrário, que elas compareçam ao grande baile”.

Dessa forma, mesmo que as protagonistas não desejem o mal daquelas que a prejudicaram ou até tramaram contra suas vidas, estas são punidas no final das histórias, momento em que se confirma a consagração da felicidade das heroínas. A madrasta de Branca de Neve vai a seu casamento, ainda com o desejo de destrui-la, e é obrigada a calçar sapatos de ferro, que haviam sido levados ao fogo, para dançar até a exaustão; as irmãs de Cinderela, por sua vez, “foram castigados por sua perversidade, ficando cegas para o resto da vida” (Grimm e Grimm, 2000, p. 28), tendo seus olhos arrancados por pombos.

Nossa Branca de Neve atualizada, ao contrário da versão dos Irmãos Grimm, deseja ser a responsável pela punição da madrasta – o que é mais importante que casar com o “príncipe encantado”, algo que a própria protagonista afirmou ao longo da trama.

Ela, assim, é tão ambivalente quanto Carminha: pode ser boa com seu amado (Jorginho), com amigos de infância, como Betânia, mas é cruel na vingança contra sua madrasta, minando-a psicologicamente. Nos capítulos em que dá início à vingança, Nina chama Carminha diversas vezes de “vagabunda”, “vadia”, “cachorra”; obriga a vilã a servi-la como sua empregada, fazendo com que ela tenha de limpar a casa – outra reversão do autor para a trama de Cinderela, e uma aproximação com a trama de O Primo Basílio, de Eça de Queirós. Nina ainda afirma para Carminha que está fazendo com ela tudo aquilo que esta já havia feito com outros personagens: tanto a própria Rita/Nina, quanto a família de Tufão, sua filha caçula e seus empregados.

A protagonista também consegue abalar a feminilidade de sua rival, cortando seus longos cabelos loiros e escurecendo-os. Por fim, passa a exigir joias e somas em dinheiro, chantageando-a, agindo da mesma maneira que Carminha, quando esta lhe roubou a “herança” de seu pai (o dinheiro da venda da casa de sua mãe). Nina consegue, aos poucos, conduzir a então forte e poderosíssima vilã à loucura, de maneira que Carminha é internada num sanatório.  

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Nesse sentido, Nina não está seguindo o percurso narrativo usualmente atribuído aos vilões? Afinal, ela planejou friamente sua vingança (algo que Branca de Neve e Cinderela, mocinhas “prototípicas”, não fazem); enganou pessoas que dela gostavam (como Tufão e Ivana, irmã deste, que não souberam por Nina da traição de Carminha); foi capaz de colocar de lado sua felicidade amorosa com Jorginho em nome da destruição de sua inimiga, colocada sempre em primeiro plano; e de uma violência psicológica sem tamanho com a mulher que mais detestava – sob a justificativa de estar fazendo justiça. No entanto, a própria protagonista se perde no objetivo de desmascarar a vilã, deliciando-se com sua lenta (e aparente) derrocada.

Se, inicialmente, as fronteiras entre mocinha e vilã pareciam tão bem delimitadas, como nos fazia parecer o primeiro capítulo, elas parecem ter sido desmembradas. A proposta do autor é, então, compreendida, pois já não é mais possível responder quem é a “mocinha” ou a “vilã”.

Tal dúvida já havia sido levantada na telenovela anterior de Carneiro, A favorita, que pretendia inovar na apresentação da “mocinha”, dispensado a roupagem “clássica” desse tipo de personagem. O público não sabia indicar, no início da trama, qual das protagonistas (Flora e Donatela, ex-parceiras de uma dupla sertaneja, sendo uma delas a assassina de Marcelo, com quem Donatela era casada) era a heroína e qual era a antagonista.

A ambivalência das personagens afugentou o público nos dois primeiros meses da trama, forçando o autor a antecipar o ponto de virada da trama e a revelar quem era a “boazinha” e a “malvada”: Flora é quem matara Marcelo, quebrando as expectativas do público em torno de Donatela. Os contornos de “mocinha” e “vilã” foram sendo cada vez mais acentuados a partir de então para cada personagem. A premissa de apresentar uma nova maneira de pensar os papéis de “mocinha” e “vilã” voltaria, no entanto, em Avenida Brasil.

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Donatela (Cláudia Raia) e Flora (Patricia Pillar): embate que afugentou o público, sem saber, inicialmente, quem era a “má” ou a “boazinha” – mas que se desenrolou num thriller de tirar o fôlego dos espectadores em 2008. 

Devemos observar que a própria Carminha, na última semana de exibição da novela, depois de desmascarada, tem suas intenções perversas justificadas, o que não acontece com as antagonistas dos contos de fada: a vilã também perdeu sua mãe (assim como Nina), assassinada por seu pai, transformado em vilão no mês final da trama; e por ele foi abandonada no mesmo lixão em que Max deixou Rita nos primeiros capítulos. Ela também havia se prostituído na juventude. Além disso, teve de abandonar o filho que teve com o amante com Lucinda, por ter sido presa ao tentar dar um golpe num turista estrangeiro.

Nesse ínterim, é revelado o passado de Lucinda: ela era a amante do pai de Carminha, indiretamente responsável pela morte de sua mãe – e foi presa acreditando ter matado a mulher, que morreu na frente da filha – e por seu abandono posterior.  Lucinda funciona, assim, como um elo entre Carminha e Nina – cujas infâncias são tão semelhantes que permitem aproximá-las.

As situações traumatizantes e a necessidade de sobrevivência num meio cruel e hostil (o lixão, tão próximo da floresta onde Branca de Neve havia sido deixada à própria sorte, ou ainda da casa onde Cinderela vivia) permitem explicar, se assim podemos dizer, a perversidade e a maldade de Carminha.

O final destinado a Carminha é outro ponto interessante. Ela sofre uma sanção negativa em relação ao percurso narrativo que empreendeu por toda a trama – associado a todas as suas armações para conseguir ascender socialmente e manter seu status quo –, sendo expulsa de casa pelo marido traído, humilhada pela sogra e pela cunhada. Ao se entregar à polícia, não compactuando com o plano do pai de continuar com o sequestro de Tufão, além de assumir a culpa pelo assassinato de Max, temos o momento de maturidade da personagem. Afinal, a própria Carminha, disposta a qualquer coisa para subir, afirma, no último capítulo, que está tendo “uma vida de verdade” no lixão (oposta ao luxo que tanto lutou para manter na mansão de Tufão) – para onde volta, ao lado de Lucinda, como catadora.

Não apenas as tragédias pessoais, ligadas à perda da figura materna e ao abandono (que traumatizaram tanto Nina/Rita quanto Carminha), mas também o perdão mútuo no último capítulo irmanam simbolicamente essas personagens: se no bloco inicial do primeiro capítulo o autor parecia deixar claro quem seria a mocinha e quem seria a vilã, opondo-as, cada qual com seu programa narrativo, pouco antes do fim, ele então relativiza tal noção – o que não acontecera na instigante A favorita.

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O perdão que fez o Brasil parar entre Nina e Carminha e a “ex”-vilã segurando o neto: uma possibilidade de recomeço – mas de real happy end para aquela que tanto lutou para ascender?

Há outras questões importantes a serem debatidas a respeito de Avenida Brasil, que terão seu lugar em postagens próximas neste blog dos novelamaníacos =D 

A SEGUIR, CENAS DO PRÓXIMO POST: A Santa Ceia vai ficar beeeem salgada! 

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Avenida Brasil: os limites entre os papéis de “vilã” e “mocinha”

Carminha e Nina: até onde vai a “vilã” ou a “mocinha”?

 

Por Leandro Ricetto

Olá, queridos leitores! Saudades do #oioioi e do jogo de gato e rato entre Carminha (Adriana Esteves) e Nina (Débora Falabella)? Eu também tenho muita, e por isso abro o post de hoje falando dessa inesquecível – e inovadora – telenovela!

Em Avenida Brasil, temos a atualização da já conhecida trama de Branca de Neve (como também a de Cinderela): a espinha dorsal da novela é baseada na violenta tensão entre madrasta (Carminha) e enteada (Rita/Nina). Como João Emanoel Carneiro, o autor, trabalha tal intertextualidade? Tendo em vista a proposta do escritor de discutir os limites entre “mocinha” e “vilã”, como poderia fazê-lo apropriando-se de histórias em que estes “papéis” narrativos são tão bem definidos? Para pensarmos nessas questões, farei uma breve análise comparando a versão dos Irmãos Grimm de Branca de Neve com a trama da “novela das nove”, buscando compreender a organização dos papéis de protagonista/antagonista na obra televisiva.

Já no primeiro capítulo, em suas cenas iniciais, ficam aparentemente definidas a mocinha e a vilã: a menina Rita é maltratada por Carminha, verbal e fisicamente. Não bastassem as agressões, a megera também quer roubar o dinheiro da venda da casa onde vivem (que era da mãe de Rita) para fugir com seu amante e cúmplice, Max. O autor consegue criar, a partir dos primeiros capítulos, uma vilã “clássica”, tão pérfida e perversa quanto a “rainha malvada” da Branca de Neve – capaz, inclusive, de pôr a vida da menina (Rita) em risco: pede a Max para abandoná-la num lixão, sem qualquer recurso. Ele pode ser interpretado como uma possível alusão ao caçador (apesar de Max não ter qualquer pena de Rita), abandonando Branca de Neve na floresta à própria sorte.

A rainha deixa de se preocupar ao pensar que Branca de Neve está morta, mas é surpreendida com o seu “retorno”, informado pelo espelho mágico. Carminha faz o mesmo – quando sabe que Rita, adotada, está longe e não lhe oferece perigo; no entanto, decide eliminá-la quando se dá conta de sua real existência, como veremos posteriormente.

Carneiro procura justificar nos primeiros capítulos a vingança de Rita, abandonada à míngua por aquela que deveria representar a figura materna, bem como assegurar a sua posição de heroína. O ponto de vista nas histórias de vingança é algo muito importante para o seu desenvolvimento. Para o caso de Avenida Brasil, como já anunciava o teaser, Nina é considerada “correta” (ao contrário de Aline, personagem de Vanessa Giácomo em Amor à Vida); mas tal noção será questionada ao longo da trama, quando conhecermos o passado de Carminha. Em Fera Radical (1988) ou Fera Ferida (1993), a vingança que motiva os personagens principais não os transforma em vilões, apesar de suas atitudes um tanto quanto controversas para meros “mocinhos”.

Devemos lembrar, aliás, de uma das obras que mais inspiram as tramas de vingança: a peça teatral A visita da velha senhora, de Friedrich Durrenmatt, em cuja protagonista, antes escorraçada da cidadezinha em que vivia, e por seu primeiro (e único) amor, volta milionária para que ele “preste contas” do que lhe fez no passado, “conquistando” os moradores com o poder de seu dinheiro – que salva o vilarejo da falência, mas conduz o antigo namorado à morte.

Rita acaba sendo adotada por um casal de argentinos com o auxílio de Mãe Lucinda, uma catadora adorada pelas crianças do lixão – e que terá um papel importante nas relações entre a garota e a madrasta. Diante de todos os sofrimentos que passou, ela tem uma juventude feliz, amada e querida pelos pais e irmãos de criação, transformando-se numa chef de cozinha, agora com o nome de Maria Antonieta (Nina). Após a morte de seu pai biológico, Rita é abandonada; no entanto, depois do falecimento de seu pai adotivo, é a jovem que deixa sua família argentina (como também seu namorado e a carreira em ascensão como chef) em busca da vingança à madrasta (e por que não dizer, do encontro com seu lado sombrio).

Um aspecto deve ser considerado: o nome dado pelos pais adotivos, Maria Antonieta. Essa nova identidade não se reflete apenas na modificação do seu nome (com o qual poderá também se desvencilhar de Carminha, sem despertar desconfiança), mas também na sofisticação e no poder financeiro necessários para que possa concretizar sua vingança. Além disso, não poderíamos deixar de pensar numa espécie de metáfora à rainha francesa que acabou na guilhotina: nossa Maria Antonieta/Nina também conquista grande “poder” (em relação à Carminha) quando der cabo de sua vingança, mas ao mesmo tempo sempre está na “corda bamba” tentando camuflar seu plano e suas reais intenções para com a algoz.

É possível comparar essa fase, junto da família adotiva, com o período em que Branca de Neve fica junto dos anões, momento que representa, para Bruno Bettelheim, autor da Psicanálise dos Contos de Fada, “o período de dificuldades, de elaboração dos problemas, seu período de crescimento” (Bettelheim, 2002, p. 216).

Se Bettelheim afirma que Branca de Neve é salva por figuras masculinas (os anões e o príncipe), Rita/Nina é salva, de certa forma, não apenas por sua família adotiva, como também pela família de Tufão. Ao contrário de Carminha, que despreza a todos secretamente, com exceção do filho, Jorginho, Nina inclusive comenta com Lucinda que considera a família de Tufão como se fosse sua – e projeta nele, aliás, a figura paterna que substitui a do pai adotivo e do biológico, dada a admiração que tem por ele, e que também a move para acabar com a farsa de Carminha.

Temos também, no fato de Nina assumir o cargo de empregada doméstica, uma releitura da trama de Cinderela. No capítulo 14, na sequência final, Carminha joga vinho no chão e ordena que Nina o limpe – do mesmo modo que a madrasta que esvazia os pratos de lentilha nas cinzas, para impedir que ela vá ao baile, recolhendo as lentilhas. No entanto, Carminha lança mão deste expediente para afirmar que Nina não sabe limpar o chão; portanto, questiona à jovem suas reais intenções ao querer ser empregada na mansão.

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Note-se algo interessante: ao contrário da Cinderela dos Irmãos Grimm, praticamente uma serviçal de sua madrasta e das irmãs, Nina parecia sê-lo enquanto trabalhava na mansão de Tufão, mas não o era na realidade. Enquanto empregada na mansão da madrasta, ela procurou se aproximar dela para planejar sua vingança (dando continuidade a seu programa narrativo inicial, enquanto fingia realizar outro – o de prestar serviços profissionais) e colocá-la em prática. Para efeito de comparação: tal programa narrativo já fora realizado por outra grande vilã da teledramaturgia (e agora, é o mesmo da então “mocinha” Nina/Rita, que parecia definida desde o primeiro capítulo da novela): Laura (Cláudia Abreu), em Celebridade, que desejava vingar o insucesso e a posterior morte de sua mãe, causadas indiretamente pela produtora cultural Maria Clara (Malu Mader).

NO PRÓXIMO POST, daremos continuidade a estas questões e descobriremos se, estruturalmente, Carminha é tão vilã quanto possa parecer, e se existe alguma proximidade com Nina, apesar do possível abismo entre as duas personagens.

O que vocês acham, queridos leitores e novelamaníacos? Bora discutir?

Mais algumas pílulas de análise sobre “Império”

Momento “Pigmalião” em “Império”

Por Leandro Ricetto

 

Vamos ao segundo capítulo de “Império”: alguém percebeu algumas coisinhas?

– A instabilidade psicológica e emocional de Cora (Marjorie Estiano, brilhante na primeira fase), destoando de um modelo já conhecido de vilã má e terrível – discute com a irmã, joga-lhe na cara que fez o que fez para manter sua “vida boa” e depois lhe pede para descansar, abraçando-a de modo maternal? Ou destacar ainda quando ela, quase em tom de súplica, pede pra irmã não chorar a morte daquele que não amou – mas que Cora tanto torturou pelo mesmo motivo?

– A oposição Evaldo (Tiago Martins) e Alfredo (Chay Suede): enquanto este se embebeda para comemorar o nascimento do filho Elivaldo e morre atropelado, temos seu irmão fazendo o mesmo, em grande estilo, com champanhe, contrastando a dificuldade em que Eliane (Vanessa Giácomo) passa a se encontrar e a pungente ascensão do protagonista, que também espera mais um filho.

– E, para mim, o destaque do capítulo: a releitura feita para “Pigmalião”, de Bernard Shaw, mas oposta, já que atinge ao protagonista “jeca” e não a uma mulher; Maria Marta (Adriana Birolli) vem com sua sofisticação e requinte e lapida um pouco que seja da casca grossa de Alfredo, em engraçadas sequências nas quais troca suas roupas (e ele anuncia usar para sempre o preto), dando-lhe um banho de loja e cortando-lhe os cabelos. Os quadros focando o corpo do protagonista em suas novas vestes, ou então seu rosto aflito ao lavar os cabelos, com os olhos arregalados, foram espetaculares.

Aproveito para agradecer ao carinho e ao estímulo de todos, especialmente de alguns amigos que há meses pediam para que eu escrevesse algo do gênero! Um grande beijo para todos e continuem acompanhando.

A SEGUIR, CENAS DO PRÓXIMO POST: 

Por entre os diamantes folhetinescos de “Império”: primeiras impressões

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Por Leandro Ricetto

Meses atrás, Aguinaldo Silva já havia comentado que preparava um novelão, um folhetim clássico, como não se via há tempos. Como Nilson Xavier já adiantou em sua pontual análise sobre o primeiro capítulo, não dá pra dizer se realmente teremos uma boa novela, mas ela realmente mostrou a que veio.

Normalmente, as histórias de Aguinaldo contemplam duas ou três fases, nas quais as tramas se engendram com notável rapidez e diante de paisagens brasileiras exuberantes. Não foi diferente com Império. Agora sob a batuta de Rogério Gomes, a novela se inicia com a grandiosidade do Monte Roraima, com ar tão misterioso quanto o do protagonista milionário, José Alfredo, e dos rastros de seu passado.

Histórias de emigrantes – vindo o próprio Alfredo de Recife, tal qual Aguinaldo -, que deixam tudo para trás em busca de ascensão, geralmente são grandes sucessos, destacando alguns exemplos como “Selva de Pedra” (1972) e “Senhora do Destino” (2004). A figura do anti-herói, sempre dúbio e humanizado, presente em praticamente todas as novelas de Janete Clair, como “Pecado Capital” (1975) e “O Astro” (1977) ressurge novamente, procurando apresentar ao público os motivos para seus “deslizes”.

A essa mesma figura, associa-se um leitmotiv sempre presente no universo do autor: a continuidade de seu “império”, de suas atividades, que nem sempre estarão bem nas mãos de seus filhos – trazendo-nos, certamente nos próximos capítulos, situações que remetem a Shakespeare (Rei Lear, Hamlet, Macbeth) e a questão da disputa pelo poder e a dificuldade de ascensão, metaforizadas pela brutalidade do trabalho de escavar e encontrar diamantes; e pela joia lapidada depois de longo (e árduo) processo. Essa ideia de continuidade, de transmissão do poder, já esteve presente em “Pedra sobre Pedra” (1992), “A indomada” (1997), “Suave Veneno” (1999, citando especialmente essa novela dadas algumas semelhanças entre Valdomiro de José Wilker e José Alfredo de Nero, bem como seus filhos/as) ou mesmo “Porto dos Milagres” (2001).

O brilho dos diamantes e o fascínio que ele exerce sobre os pobres-diabos dos mineiros ou então de “Braga” (Regina Duarte), a estranhíssima figura que promete, tal qual Reginaldo Faria, muita riqueza ao protagonista seriam os mesmos que os de Feliciano/Raimundo Flamel (Edson Celulari), com o ouro que levou à morte seus pais e o conduziu à vingança em “Fera Ferida” (1993)? Então os diamantes aparecem na abertura, sob a popularíssima canção dos Beatles, reluzindo e provocando os espectadores: tão difíceis, tão comuns, tão instigantes quanto é o folhetim. A repetição é uma característica inerente ao folhetim, bem como a constante retomada dos assuntos, das tramas, das ações dos personagens, de suas características, para prender os espectadores que vão e vem e lembrá-los o tempo todo em que ponto, em que momento estão: e há algum tempo não se via um primeiro capítulo tão aristotélico, dada o primor na ordenação (apesar da rapidez) de tantas ações, bem como da apresentação dos principais personagens.

Nas lembranças do Alfredo mais velho (Alexandre Nero), as vestes pretas, a procura por certa neutralidade e sossego parece impossível: apesar dos movimentos e passos firmes, demonstrando grande determinação, o passado parece sempre espreitar o protagonista. Eliane (Vanessa Giácomo/Malu Galli) não é qualquer mocinha sofredora; é antes uma mulher casada que tem um caso com o cunhado – eles inclusive se perguntam o quanto isso é certo ou errado, dialogando com o público que, por esse motivo, poderia não aceitar o personagem de Suede/Nero. Cora, com uma atuação inspiradíssima de Marjorie Estiano, está sempre bisbilhotando, silenciosa, espreitando a tudo e a todos, como se nem pudesse dormir – até mesmo porque seus olhos praticamente não piscam, e seus movimentos são calculados e certeiros; no entanto, não parece ela uma espécie de superego pulsante, o tempo todo impedindo a realização dos desejos (inclusive sexuais) de sua irmã, manipulando-a para seus estranhos interesses? E o que dizer do casamento entre Evaldo (Tiago Martins) e Eliane? Do marido bronco, de fala dura com a esposa, que só quer satisfazer suas necessidades na mulher todas as noites, deleitando-se de prazer (sob o silêncio e a total passividade no imobilismo, inclusive do olhar, de Eliane), e depois dormir em paz para um novo dia de longo trabalho?

Nesse momento, a meu ver, apesar das já conhecidas fórmulas de sucesso, Aguinaldo propôs um polêmico par romântico, cujo fracasso é de responsabilidade óbvia de uma pérfida vilã – mas que pareceu, ao longo do capítulo, uma mulher que, além da maldade, do “fiz porque quis”, parece pensar estar agindo “corretamente” em suas ações, em sua praticidade sempre utilitária. Usam-se fórmulas conhecidas; mas revisitadas, questionando seus limites de certo modo: não seria interessante pensar que os mentores de José Alfredo (Nero) são dois dos mais populares atores de televisão do Brasil, Reginaldo Faria e Regina Duarte, em relação ao estreante em novelas globais Chay Suede?

O gancho para o capítulo deu-se com a repetição da promessa da riqueza – não um assassinato ou o abandono intencional de um bebê – que já sabemos conquistada. Mas como? Ao menos em seu primeiro capítulo, a novela anunciou sua aparente simplicidade, mas que certamente surpreenderá os espectadores e deve elevar os índices de audiência nos próximos meses com seus ganchos, suas temáticas, seus personagens. Vejamos se os diamantes de “Império” continuarão brilhando ou passarão despercebidos pelo público. Sucesso!!!