Avenida Brasil: os limites entre os papéis de “vilã” e “mocinha”

Carminha e Nina: até onde vai a “vilã” ou a “mocinha”?

 

Por Leandro Ricetto

Olá, queridos leitores! Saudades do #oioioi e do jogo de gato e rato entre Carminha (Adriana Esteves) e Nina (Débora Falabella)? Eu também tenho muita, e por isso abro o post de hoje falando dessa inesquecível – e inovadora – telenovela!

Em Avenida Brasil, temos a atualização da já conhecida trama de Branca de Neve (como também a de Cinderela): a espinha dorsal da novela é baseada na violenta tensão entre madrasta (Carminha) e enteada (Rita/Nina). Como João Emanoel Carneiro, o autor, trabalha tal intertextualidade? Tendo em vista a proposta do escritor de discutir os limites entre “mocinha” e “vilã”, como poderia fazê-lo apropriando-se de histórias em que estes “papéis” narrativos são tão bem definidos? Para pensarmos nessas questões, farei uma breve análise comparando a versão dos Irmãos Grimm de Branca de Neve com a trama da “novela das nove”, buscando compreender a organização dos papéis de protagonista/antagonista na obra televisiva.

Já no primeiro capítulo, em suas cenas iniciais, ficam aparentemente definidas a mocinha e a vilã: a menina Rita é maltratada por Carminha, verbal e fisicamente. Não bastassem as agressões, a megera também quer roubar o dinheiro da venda da casa onde vivem (que era da mãe de Rita) para fugir com seu amante e cúmplice, Max. O autor consegue criar, a partir dos primeiros capítulos, uma vilã “clássica”, tão pérfida e perversa quanto a “rainha malvada” da Branca de Neve – capaz, inclusive, de pôr a vida da menina (Rita) em risco: pede a Max para abandoná-la num lixão, sem qualquer recurso. Ele pode ser interpretado como uma possível alusão ao caçador (apesar de Max não ter qualquer pena de Rita), abandonando Branca de Neve na floresta à própria sorte.

A rainha deixa de se preocupar ao pensar que Branca de Neve está morta, mas é surpreendida com o seu “retorno”, informado pelo espelho mágico. Carminha faz o mesmo – quando sabe que Rita, adotada, está longe e não lhe oferece perigo; no entanto, decide eliminá-la quando se dá conta de sua real existência, como veremos posteriormente.

Carneiro procura justificar nos primeiros capítulos a vingança de Rita, abandonada à míngua por aquela que deveria representar a figura materna, bem como assegurar a sua posição de heroína. O ponto de vista nas histórias de vingança é algo muito importante para o seu desenvolvimento. Para o caso de Avenida Brasil, como já anunciava o teaser, Nina é considerada “correta” (ao contrário de Aline, personagem de Vanessa Giácomo em Amor à Vida); mas tal noção será questionada ao longo da trama, quando conhecermos o passado de Carminha. Em Fera Radical (1988) ou Fera Ferida (1993), a vingança que motiva os personagens principais não os transforma em vilões, apesar de suas atitudes um tanto quanto controversas para meros “mocinhos”.

Devemos lembrar, aliás, de uma das obras que mais inspiram as tramas de vingança: a peça teatral A visita da velha senhora, de Friedrich Durrenmatt, em cuja protagonista, antes escorraçada da cidadezinha em que vivia, e por seu primeiro (e único) amor, volta milionária para que ele “preste contas” do que lhe fez no passado, “conquistando” os moradores com o poder de seu dinheiro – que salva o vilarejo da falência, mas conduz o antigo namorado à morte.

Rita acaba sendo adotada por um casal de argentinos com o auxílio de Mãe Lucinda, uma catadora adorada pelas crianças do lixão – e que terá um papel importante nas relações entre a garota e a madrasta. Diante de todos os sofrimentos que passou, ela tem uma juventude feliz, amada e querida pelos pais e irmãos de criação, transformando-se numa chef de cozinha, agora com o nome de Maria Antonieta (Nina). Após a morte de seu pai biológico, Rita é abandonada; no entanto, depois do falecimento de seu pai adotivo, é a jovem que deixa sua família argentina (como também seu namorado e a carreira em ascensão como chef) em busca da vingança à madrasta (e por que não dizer, do encontro com seu lado sombrio).

Um aspecto deve ser considerado: o nome dado pelos pais adotivos, Maria Antonieta. Essa nova identidade não se reflete apenas na modificação do seu nome (com o qual poderá também se desvencilhar de Carminha, sem despertar desconfiança), mas também na sofisticação e no poder financeiro necessários para que possa concretizar sua vingança. Além disso, não poderíamos deixar de pensar numa espécie de metáfora à rainha francesa que acabou na guilhotina: nossa Maria Antonieta/Nina também conquista grande “poder” (em relação à Carminha) quando der cabo de sua vingança, mas ao mesmo tempo sempre está na “corda bamba” tentando camuflar seu plano e suas reais intenções para com a algoz.

É possível comparar essa fase, junto da família adotiva, com o período em que Branca de Neve fica junto dos anões, momento que representa, para Bruno Bettelheim, autor da Psicanálise dos Contos de Fada, “o período de dificuldades, de elaboração dos problemas, seu período de crescimento” (Bettelheim, 2002, p. 216).

Se Bettelheim afirma que Branca de Neve é salva por figuras masculinas (os anões e o príncipe), Rita/Nina é salva, de certa forma, não apenas por sua família adotiva, como também pela família de Tufão. Ao contrário de Carminha, que despreza a todos secretamente, com exceção do filho, Jorginho, Nina inclusive comenta com Lucinda que considera a família de Tufão como se fosse sua – e projeta nele, aliás, a figura paterna que substitui a do pai adotivo e do biológico, dada a admiração que tem por ele, e que também a move para acabar com a farsa de Carminha.

Temos também, no fato de Nina assumir o cargo de empregada doméstica, uma releitura da trama de Cinderela. No capítulo 14, na sequência final, Carminha joga vinho no chão e ordena que Nina o limpe – do mesmo modo que a madrasta que esvazia os pratos de lentilha nas cinzas, para impedir que ela vá ao baile, recolhendo as lentilhas. No entanto, Carminha lança mão deste expediente para afirmar que Nina não sabe limpar o chão; portanto, questiona à jovem suas reais intenções ao querer ser empregada na mansão.

carminha e nina

Note-se algo interessante: ao contrário da Cinderela dos Irmãos Grimm, praticamente uma serviçal de sua madrasta e das irmãs, Nina parecia sê-lo enquanto trabalhava na mansão de Tufão, mas não o era na realidade. Enquanto empregada na mansão da madrasta, ela procurou se aproximar dela para planejar sua vingança (dando continuidade a seu programa narrativo inicial, enquanto fingia realizar outro – o de prestar serviços profissionais) e colocá-la em prática. Para efeito de comparação: tal programa narrativo já fora realizado por outra grande vilã da teledramaturgia (e agora, é o mesmo da então “mocinha” Nina/Rita, que parecia definida desde o primeiro capítulo da novela): Laura (Cláudia Abreu), em Celebridade, que desejava vingar o insucesso e a posterior morte de sua mãe, causadas indiretamente pela produtora cultural Maria Clara (Malu Mader).

NO PRÓXIMO POST, daremos continuidade a estas questões e descobriremos se, estruturalmente, Carminha é tão vilã quanto possa parecer, e se existe alguma proximidade com Nina, apesar do possível abismo entre as duas personagens.

O que vocês acham, queridos leitores e novelamaníacos? Bora discutir?

6 comentários sobre “Avenida Brasil: os limites entre os papéis de “vilã” e “mocinha”

  1. Lelê, amei esse poste! Eu ainda me pego cantando ~oioioi~ todo dia até hoje. Avenida Brasil foi tão inovadora porque não se limitou a renovar só na estética. A ambiguidade da mocinha e da vilã foi um recurso brilhante que, pra mim, deu um novo gás à teledramaturgia brasileira — que vira-e-mexe saía um pouco da zona de conforto VILÃ TERRÍVEL + MOCINHA PERFEITA, mas sem muito aprofundamento. Sempre tinha sentido a falta da sensação de acompanhar uma história madura nas novelas, algo que aproximasse as personagens de pessoas reais, com todas as suas idiossincrasias, e que permitisse ao público explorar a psicologia delas. É meio difícil se apaixonar e se identificar com personagens preto-no-branco, como costumavam ser as pré-Avenida Brasil — tanto que as mocinhas sempre ganhavam o ódio mortal da galera, enquanto as vilãs, pelo menos engraçadas, viviam sendo amadas e adoradas. A Nina e a Carminha mudaram isso, e no final a gente amava as duas e queria que as duas se dessem bem. Amei também o paralelo que você traçou com outras literaturas, principalmente com “A visita da velha senhora” (me lembro que quando li essa peça também lembrei da vingança da Nina e da simpatia que essas personagens causavam, justamente por conta de suas trajetórias pregressas). E eu já disse que adoro as referências que você usa, né? Vou começar a fazer esse exercício de traçar paralelos também! Beijos com amor

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    • Isabéééééulaaaa, fico muito feliz que você tenha gostado! Além desta, há outra referência SEM A QUAL não dá pra fazer histórias de vingança (e na qual a tão comparada, ao menos na época, Revenge, também se baseia): O Conde de Monte Cristo. Fora as outras referências teledramatúrgicas que citei; trata-se de uma estrutura muito usada não apenas em novelas, mas em toda a produção audiovisual, e que tem, lá atrás, suas fontes em tragédias gregas como Electra, devido à vingança daquela que perdeu o pai pelas mãos da mãe traidora, e que quer fazer justiça. Beeeeijooooo!

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  2. Mais uma análise interessantíssima! Nunca tinha reparado nessas referências. Vamos torcer pra que a novela atual preencha o vazio que Avenida Brasil deixou nos corações de todos os noveleiros.

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    • Rodrigo, muuuuuito obrigado! Este é apenas o primeiro post (até a manhã desta sexta devo postar a parte final dele) sobre Avenida Brasil, que merece muitas outras discussões: as propostas dos personagens (ambíguos o tempo todo); os diálogos irônicos e repletos de referências literárias e cinematográficas (da cultura pop, por exemplo); o andamento da trama; e o retorno ao que havia de mais genuíno no folhetim, a exemplo dos ganchos – que desde os folhetinhs literários são imprescindíveis para manter o público (e no caso de Avenida Brasil, não apenas entre os capítulos, mas entre os blocos de cada um deles).

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  3. Leandro, como vc bem sabe eu assisto muitas séries americanas; Revenge inclusive. Aliás, esta é uma das poucas séries das quais eu consigo me manter atualizada. Mas confesso que sempre achei injusta a comparação que faziam entre a novela brasileira. Avenida Brasil sempre me pareceu ter uma trama mais elaborada, com personagens bem construídos e cheios de camadas (ao menos no que dizia respeito aos personagens de importância ao desenvolvimento central), enquanto Revenge se destaca apenas por ser um dramalhão mexicano americanizado com uma vilã carismática. Confesso que adoro um mexicanismo, mas se as novelas mexicanas se assumem em seu exagero, Revenge fica em cima do muro numa dualidade bem pobre na disputa entre mocinha vingadora e vilã gananciosa na leitura mais pobre já feita sobre a história de Dumas. Me desculpem os fãs, mas Avenida Brasil fez um trabalho muito mais sofisticado.

    Tudo isso para dizer que amei o texto e a proposta do blog de fazer leituras críticas (e dignas) das produções brasileiras.
    Abraços e desejos sinceros de sucesso.

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    • Viiiii, Revenge está na grade da ABC, que tem algumas propostas para suas séries, tendo em vista o público-alvo que almeja atingir, a exemplo de Once upon a time: são séries repletas de referências, literárias e cinematográficas (seja nos personagens, nos diálogos, na fotografia, na trilha sonora), mas que, a meu ver, poderiam ter diálogos e enredos mais complexos (do ponto de vista psicológico). Avenida, em si, bebe na fonte de A visita da velha senhora, tais quais novelas como “Cavalo de Aço” (o original de “Fera Radical”) ou mesmo “Tieta”; é a sua fonte primária, ainda mais em se tratando das motivações dos protagonistas e suas semelhanças com a protagonista da peça citada. Para “O conde de Monte Cristo”, citaria novelas como “Prova de Amor”, da Record, de Tiago Santiago; ou então “Flor do Caribe”, exibida ano passado no horário das 18h na Globo, de Walter Negrão – mesmo escritor de “Cavalo de Aço” e “Fera radical”.

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